RESUMO
Comportamentos repetitivos, estereotipias e interesses restritos são alguns dos principais
sintomas que compõem o transtorno de Asperger. Todavia, até que ponto é possível diferenciá-
los de sintomas obsessivo-compulsivos que preencham critérios para transtorno
obsessivo-compulsivo (TOC)? Muitas vezes, não é possível. Este trabalho relata o caso de
um paciente com síndrome de Asperger e TOC. Abordamos até que ponto é realmente importante
a distinção de um TOC como comorbidade distinta do Asperger, bem como nossa
conduta terapêutica, na qual um inibidor seletivo da recaptura de serotonina (ISRS) em
doses altas (fluoxetina) foi fundamental para melhor adaptação do paciente a suas funções
socioocupacionais, melhorando significativamente sua qualidade de vida.
ABSTRACT
Repetitive behavior, stereotypies and restricted interests are some of the main symptoms that
compound the Asperger’s disorder. However, until what point is possible to differentiate them
from obsessive-compulsive symptoms that meet criteria for obsessive-compulsive disorder (OCD)?
Many times, that’s not possible. This work reports the case of a patient with Asperger syndrome
and OCD. We bring up until what point is really important the distinction of OCD as a comorbidity
different from Asperger, and also our therapeutic conduct, in which high doses of a selective
serotonin reuptake inhibitor – SSRI – (fluoxetine) was fundamental to a better socio-occupational
adjustment of the patient, significantly improving his quality of life.
Recebido
8/12/2007
Aprovado
23/12/2007
Key-words
Asperger syndrome,
obsessive-compulsive
disorder.
J Bras Psiquiatr, 56(4): 287-289, 2007
288
Fonseca JMA et al. CASO CLÍNICOINTRODUÇÃO
Embora Hans Asperger tenha descrito a psicopatia autista
em 1944 (Asperger, 1944), a condição só foi receber o nome
do médico austríaco em 1981, com Lorna Wing, quando publicou
um estudo com 34 casos aos quais ela referiu como
“síndrome de Asperger” (Wing, 1981). Sua prevalência é difícil
de ser avaliada, visto que existem poucos estudos neste
sentido, com resultados que variam de 2 a 56 casos por
10.000 habitantes (Suzuki e Saito, 2007). Tem se falado cada
vez mais sobre os transtornos que compõem o “espectro
autista”, e desde que a(o) síndrome/transtorno de Asperger
foi reconhecida(o) como uma entidade nosológica a parte,
pela Organização Mundial de Saúde (1992) e pela Associação
Americana de Psiquiatria (1994), tem surgido discussões
acerca de suas diretrizes e critérios diagnósticos (Szatmari,
2000). Além de compartilhar características comuns a outros
transtornos do “espectro autista”, alguns de seus principais
sintomas se sobrepõem a outras condições, tais como
transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)
e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), dificultando o
estabelecimento de uma fronteira entre o que seria uma
manifestação da própria síndrome ou o que seria uma comorbidade
(Blacher
et al., 2003; Gillberg, 2002).Descrição do caso
Escolar, masculino, oito anos, brasileiro, branco, natural do
Rio de Janeiro, cursando terceira série do ensino fundamental,
foi encaminhado ao ambulatório de Psiquiatria do Hospital
Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG) para “avaliação
nesta instituição, pois a criança está apresentando movimentos
estereotipados”.
A mãe trazia uma queixa de que desde os 3 anos de idade
“ele é muito inquieto, disperso”. E acrescentou: “A cada
época tem uma mania diferente”. O pai referia que às vezes
o paciente ficava muito agitado e impulsivo (por exemplo,
cuspia). Algumas vezes durante a entrevista ele agitava repetidamente
as mãos e os braços (compulsão), sempre demonstrava
muita dificuldade em olhar diretamente para o
entrevistador e quando ia pegar algum objeto fazia movimentos
ondulantes com as mãos (maneirismos). O pai dizia
que ele se sentia desconfortável em ambientes sociais
e que tinha “dificuldade para encarar as pessoas”, e sempre
que ficava mais ansioso as compulsões aumentavam.
Em casa, os maneirismos, estereotipias (pequenos movimentos
repetitivos com a cabeça) e rituais (tocar diversas
vezes na geladeira) atrapalhavam muito suas atividades
cotidianas. Às vezes, repetia incessantemente falas de personagens
de desenhos animados. Tinha muita dificuldade
para se vestir, escrever ou executar outras tarefas manuais.
Apesar de acentuado prejuízo na interação social, dificuldade
de estabelecer relacionamento com seus pares,
falta de uma reciprocidade social e estranhezas do comportamento,
o paciente não apresentava qualquer comprometimento
da linguagem verbal ou do desenvolvimento
cognitivo, estando inclusive cursando ano letivo escolar
compatível com a idade.
Foi medicado com risperidona, que teve de ser aumentada
progressivamente até chegar a 2,0 mg/dia, para diminuir
a agitação, reduzindo também os maneirismos. As
compulsões passaram então a florir ainda mais o quadro,
passando a ser o principal problema. Foi então adicionado
fluoxetina, sendo progressivamente aumentada até
60 mg/dia, se seguindo redução considerável das compulsões
e dos rituais. Esta abordagem promoveu melhora
acentuada da qualidade de vida do paciente, que passou a
adaptar-se melhor a suas funções, melhorando o relacionamento
com seus pares.
Figura 2.
maneirismos
Caligrafia depois do tratamento, após controle dosFigura 1.
Caligrafia antes do tratamentoDISCUSSÃO
De acordo com nossas pesquisas nas bases de dados Medline,
Lilacs e Scielo, este trabalho é o segundo relato de
caso na América Latina de um paciente com transtorno
de Asperger e TOC. Destacamos ainda a boa resposta ao
tratamento específico dos sintomas obsessivo-compulsivos
com um ISRS, melhorando muito a qualidade de vida
do paciente.
De acordo com o DSM-IV TR, os indivíduos com transtorno
de Asperger têm um comprometimento importante
da interação social, padrões repetitivos do comportamento
e interesses restristos, sem haver atraso clinicamente significativo
do desenvolvimento cognitivo e da linguagem
(American Psychiatric Association, 2000). Em conceitos
práticos, essas características resumem esta condição a um
quadro semelhante ao transtorno autista, porém com a inteligência
preservada, levando alguns autores a incluírem a
síndrome de Asperger no “autismo de alto desempenho”
(Gillberg, 2002).
J Bras Psiquiatr, 56(4): 287-289, 2007
CASO CLÍNICO
Síndrome de Asperger e TOC 289Vários transtornos podem ainda associar-se a síndrome
de Asperger, chegando ao ponto de alguns autores afirmarem
que uma comorbidade provavelmente estará presente
uma vez que o diagnóstico de Asperger esteja feito (Gillberg
e Billstedt, 2000). Estas podem ser TDAH, depressão, TOC,
entre outras (Blacher
sintomas principais de alguns desses transtornos também
fazem parte da síndrome de Asperger, acaba se tornando
difícil diferenciar o que seria uma manifestação desta de
uma comorbidade.
Ao se falar especificamente da relação entre TOC e síndrome
de Asperger, fica evidente o problema em distinguir
a primeira da última (respectivamente) como um diagnóstico
em separado (Blacher
se que quando as obsessões, as compulsões e os rituais
tornam-se graves e incapacitantes, o diagnóstico de TOC
como uma comorbidade deve ser feito (Gillberg, 2002).
Indepentemente de se querer determinar as barreiras
entre TOC e Asperger, é de suma importância identificar
sintomas obsessivos-compulsivos graves que sejam passíveis
de tratamento específico, como demonstrado no caso
clínico descrito. Considerando esse fato, os ISRS são a melhor
abordagem, sendo muitas vezes necessárias doses altas
(Blacher
Vale salientar que não existe tratamento específico para
a síndrome de Asperger, mas os pacientes podem se beneficiar
de um manejo adequado das comorbidades e de
um bom tratamento sintomático. Freqüentemente se faz
necessário o uso de antipsicóticos (especialmente os “atípicos”)
para redução da agitação, do comportamento agressivo
e dos maneirismos (Blacher
et al., 2003). E considerando que oset al., 2003; Gillberg, 2002). Aceita-et al., 2003; Gillberg, 2002).et al., 2003; Gillberg, 2002).CONCLUSÃO
Ainda é escasso o número de estudos que avaliam a incidência
e a prevalência do transtorno de Asperger, bem
como de suas comorbidades. Entretanto, considera-se que
a chance da presença de uma comorbidade ser alta, e por
vezes traz maior prejuízo e sofrimento do que a própria síndrome
de Asperger. Há ainda o fato de que muitas vezes
o diagnóstico é dificultado pela interposição de sintomas.
Em relação ao TOC, muitas vezes a distinção é feita pela
intensidade dos sintomas. Foi o ocorrido com o paciente
do caso clínico apresentado, no qual o diagnóstico de TOC
comórbido foi estabelecido, necessitando tratamento específico,
que obteve execelente resultado. Concluímos que
a fluoxetina pode ser útil na abordagem do Asperger, visto
que mais importante do que se discutir os limites entre esta
síndrome e o TOC, é fundamental administrar a terapêutica
específica para os sintomas obsessivos-compulsivos, que,
por vezes, são o principal problema do paciente.
REFERÊNCIAS
American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 4th ed.
Text revision. Washington: American Psychiatric Association, 2000.
American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 4th ed.
Washington: American Psychiatric Association, 1994.
Asperger H. Die “autistischen Ppsychopathen” in Kindesalter [in German]. Autistic psychopathy
in childhood. Arch Psychiatr Nervenkr. 117:76-136, 1944.
Blacher J, Kraemer B, Schalow M. Asperger syndrome and high functioning autism: research
concerns and emerging foci. Curr Opin Psychiatry. 16(5):535-42, 2003.
Gillberg C. A Guide to Asperger syndrome. New York: Cambridge University Press, 2002.
Gillberg C, Billstedt E. Autism and Asperger syndrome: coexistence with other clinical disorders.
Acta Psychiatr Scand. 102:321-30, 2000.
Sepúlveda RG. Trastorno obsesivo compulsivo en un adolescente con síndrome de Asperger. Rev
Psiquiatr Clín (Santiago de Chile). 33(1/2):105-11, 1996.
Suzuki Y, Saito K. Epidemiology of Asperger’s syndrome. Nippon Rinsho. 65(3):419-23, 2007.
Szatmari P. The classification of autism, Asperger’s syndrome, and pervasive developmental
disorder. Canadian Journal of Psychiatry. 45:731-8, 2000.
Wing L. Asperger’s syndrome: a clinical account. Psychological Medicine. 11:115-29, 1981.
World Health Organization. The ICD-10 classification of mental and behavioral disorders: clinical
descriptors and diagnostic guidelines. Geneve: World Health Organization, 1992.
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